A SOLITÁRIA DE IPEROIG

Publicado no jornal Matéria Prima ano II nº 74

   Adentrei pelo portão principal o cemitério central de Ubatuba, esquina da D. Joao III; os outros dois portões na mesma calçada, fechados. O que primeiro notei foi a falta da árvore que se localizava bem próximo ao portão do meio e cujas raízes e tronco faziam simbiose com o túmulo que procurava, o de Idalina Graça.

   Duvidando um tanto de minha memória, já tantos anos passados da última visita, mais de vinte, acerquei-me do local lendo as plaquinhas que registravam os residentes eternos daqueles túmulos. Alguns bem edificados, recobertos do famoso granito de Ubatuba, parece que hoje escasso; grande número deles mal conservados, se desmanchando alguns, muitos sem identificação alguma a oferecer lembrança de seu ocupante.

   Mas, do de Idalina Graça nem sinal! Lembro-me, ainda que vagamente: simples, nenhum ornamento supérfluo, somente tijolos, reboco simples, plaquinha com seu nome. Rachada sua estrutura por forças daquela árvore. Procurei bastante, talvez estivesse um pouco desorientado, tanto tempo! Estaria talvez nas redondezas. Mas… realmente nada! Decerto pois um daqueles não muito cuidados, sem a plaquinha, são tantos; um deles seria o de Idalina Graça. Que remédio? É perguntar na administração do cemitério, com certeza saberiam.

   Pois é isso! Para lá me dirigi. Pertinho. Salinha pequena, limpa, aparentemente bem cuidada, computador, não reparei muito, não era minha intenção. Sentado atrás da mesa um senhor de aparência limpa e simpática, inteligente, conversava com uma senhora à sua frente.  Cumprimentei, pedindo licença, perguntando:

   – Gostaria de falar com o zelador.

   – Ah, o coveiro deu uma saidinha mas volta já.

   – Não, não. Gostaria mesmo de falar com o responsável pelo cemitério.

   – Eu sou o administrador.

   – Então é o senhor mesmo. Não havia uma árvore perto daquele portão do meio?

   – Havia. Há muitos anos.

   – Vinte anos ou mais.

   – É.

   – E, junto, o túmulo de Idalina Graça.

   – Há muitos anos.

   – É.  Vinte anos ou mais. O que foi feito dele, onde está?

   O gestual da resposta deu-me de imediato a certeza do que havia acontecido, tão comum neste meu amado País. Aquele discreto levantar de ombros, abrindo os braços com as mãos, relaxadas, espalmadas para cima: sei lá, sumiu, desapareceu, quem pode dizer. Eu entendi, sim, mas minha mente não aceitava, não poderia ser – pôde! Não aconteceu – aconteceu! Incrédulo, mas já ciente da realidade, insisti.

   – O que foi feito dele? E a ossada? Não me responde, ou melhor, respondeu: não se sabe o que aconteceu com o túmulo, não se sabe o que aconteceu com a ossada. O tempo…

   Óbvio, que alguém teria desmanchado o túmulo, ou cedido para outro que o desejasse ocupar; óbvio, que algum destino teria sido dado aos ossos, qual?  mas … não se sabe. Óbvio.

   – Mas senhor, naquela época, há pouco mais de vinte anos, a FUNDART (prá quem não sabe, Fundação de Arte e Cultura, órgão atrelado à municipalidade de Ubatuba, com seu presidente nomeado pelo Prefeito e verbas do orçamento municipal) havia se comprometido formalmente a zelar pelo túmulo de Idalina Graça.

   – É, o pessoal da FUNDART veio cá, a menos de dez anos, pra saber do tal túmulo, mas nessa época já não mais existia. Então dei a eles a sugestão de erigir um pedestal, com uma placa dizendo que cá esteve enterrada Idalina Graça, explicando ao público sua importância. Gostaram da idéia, iam providenciar. Só que falaram isso, como disse, há quase dez anos, e nada mais aconteceu. Ainda assim o senhor foi o único a perguntar por ela em muito tempo.

   Agradeci com um sorriso e fui-me retirando que nada mais havia a fazer por ali. Por dentro minha alma sentia-se pequenininha, chorava. O descaso quase absoluto que temos em cultuar a memória de nossa história, nossos vultos, nossos feitos. Foi Nelson Rodrigues? “O brasileiro tem síndrome de vira-lata”; isso ou algo semelhante, neste sentido. Como diz meu concunhado: você vai ao Estados Unidos e encontra lá um monumento, e a explicação “aqui George Washington parou e, olhando a paisagem, urinou”. Tudo é rememorado e cultuado, às vezes até falseado, o que não estou a defender, mas posso acreditar que o túmulo de Idalina Graça não teria, lá, se diluído no ar.

   Logo Idalina do Amaral Graça, um dos poucos nomes ilustres de Ubatuba – sim, houveram outros, mas aqui não é sua hora – a quem a elite cultural de Ubatuba tanto incensa, a “Solitária de Iperoig”, a “Escritora Iletrada”.  Infância pobre, órfã nascida em Ilha Bela, não completou dois anos da escola primária. Casou-se, não teve descendência. Foi proprietária de pequeno hotel em Ubatuba, onde foi descoberta e revelada ao mundo por Willy Aureli e reconhecida, e aclamada, por Monteiro Lobato, Paulo Florençano, Wladimir Pizza e tantos outros. Publicou dois livros: “Terra Tamoia” e “Bom dia Ubatuba”. Preparava outro, mas faleceu. FUNDART de Ubatuba, Prefeitura de Ubatuba, intelectuais de Ubatuba: aonde estão? Não têm história, não têm passado, não têm memória?

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